1. O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,35-42) faz-nos ver no primeiro plano João Batista e Jesus. João Batista permanece lá «estacado» (eistêkei), em Bethabara [= «Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Batista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. João coloca-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué 3). É desse lugar de passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti). E logo o apresenta como o Cordeiro de Deus. Apresenta-o a nós, e põe-nos em movimento atrás d’Ele. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, talya’. Mas talya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada, com uma pincelada de mestre, a identidade de Jesus.
2. E aí vamos nós a segui-l’O, agora no Caminho que conduz a Casa. «Onde moras?», é a questão que nos move (João 1,38). E a resposta-convite de Jesus: «Vinde e vede» (João 1,39) aviva e sacia a nossa sede. Fomos e vimos quem era (ideîn) e morámos com Ele um dia (João 1,39), simbolismo para indicar de agora em diante, sempre. Percebemos logo que era aquela a nossa Casa. Por isso, André, um de nós, o Prôtóklêtos Andréas, o «primeiro chamado», como o qualifica ainda hoje a Tradição Oriental, foi logo chamar, «primeiro chamante», o seu irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (João 1,40-42). O resto é com Jesus. «Olhando-o por dentro (emblépô autô), Jesus disse: “Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro”» (João 1,42). Depois é Filipe que é chamado por Jesus, sem introdução ou explicação (João 1,43). E Filipe conduz a Jesus Natanael, também sem qualquer explicação ou demonstração convincente.
3. É importante precisar que a demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. Na verdade, a eficácia do testemunho acontece, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se ou a render-se perante as provas, mas quando o incita a fazer, por sua vez, a experiência, levando-o a implicar a própria vida. A experiência da testemunha é sempre mais forte e mais radical do que as provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a Natanael, mas face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (João 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente: «Vem e vê!» (João 1,46).
4. Mas voltemos ao chamamento decisivo, aquele que muda o nome, isto é, segundo a mentalidade bíblica, a pessoa e a sua vida. Diz Jesus: «Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro» (João 1,42). O termo hebraico normal para dizer «rocha», «rochedo», «pedra firme» é tsûr ou sela‘, que designa mesmo Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também conhece o termo keph, aramaico kêpha’, que designa a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos; kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça, para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas.
5. Nasce aqui, portanto, um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos, alimentados.
6. O contraponto musical vem hoje do Primeiro Livro de Samuel 3,3-19, com Deus a chamar uma e outra vez o jovem Samuel, que «ainda não conhecia o Senhor» (1 Samuel 3,7), e Eli, sacerdote do santuário de Silo, a fazer bem o papel de Diretor Espiritual. Depois de discernir a Voz de Deus que chamava Samuel, é para Deus que Eli remete Samuel, com a indicação precisa: «Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1 Samuel 3,9). E o texto termina com o belo resumo do narrador: «E Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e nenhuma das suas palavras deixou cair por terra» (1 Samuel 3,19). Extraordinário programa de vida para a Igreja inteira e cada cristão em particular.
7. E São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios 6,13-20, traça em contraluz a radiografia da grande cidade de Corinto, capital da província romana da Acaia, com muitas divisões, distrações, idolatrias e imoralidades, coisas em tudo semelhantes ao que se vê nas grandes metrópoles modernas. E aponta aos cristãos de Corinto e de hoje o caminho do Evangelho: o corpo, que, no mundo bíblico, diz a pessoa toda, integral, é para o Senhor, e o Senhor é para o corpo.
8. A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com a docilidade e o rumo novo, para o Senhor, que devemos empreender. Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje: «Sacrifício e oblação não Te agradaram, mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo 40,7), expressão forte que a Carta aos Hebreus cita atualizando assim: «Sacrifício e oblação Tu não quiseste, mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5). Sim, dá para entender, que o corpo é para oferecer ao bom Deus, num culto novo de todos os dias (cf. Romanos 12,1). Mas, para que a melodia chegue ao coração, também é verdade, como diz o Salmo e nos lembra poeticamente Nelly Sachs, que talvez seja necessário escavar bem os ouvidos.