XXI Domingo do Tempo Comum: «Dizer Jesus»

1. Cesareia de Filipe, atual Banyas, na tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS, que atravessa o Evangelho (Mateus 16,13-20) deste Domingo XXI do Tempo Comum. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Ali construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto. Dela resta hoje a gruta do deus Pã, lugar que os peregrinos da Terra Santa costumam visitar.

2. É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que Jesus põe a questão da sua identidade. Soberanamente Jesus pergunta: «Quem dizem as pessoas que é o Filho do Homem?» (Mateus 16,13). Dizem-lhe que o povo pensa que Jesus é um profeta. Um entre muitos: antes dele apareceram muitos; depois dele, outros poderão aparecer. De qualquer modo, dá-se a entender que o povo não vê em Jesus uma pessoa singular e única. Ouvida esta resposta, Jesus avança, logo de seguida, de forma directa e enfática, uma nova pergunta: «E vós, quem dizeis que Eu sou?» (Mateus 16,15). A esta nova pergunta, posta por Jesus aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Simão Pedro foi rápido a responder: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo!» (Mateus 16,16). Jesus declara «Feliz» (makários) Simão, filho de Jonas, não por achar que ele reunia competência humana para expressar aquele dizer, mas por saber que o tinha recebido do Pai (Mateus 16,17). Chamado por Jesus (Mateus 4,18-19). Predestinado pelo Pai (Romanos 8,29-30).

3. De forma diferente do povo, Simão Pedro atinge a singularidade de Jesus. Enquanto Cristo ou Messias, Jesus não é um entre muitos. É único, primeiro e último, definitivo, enviado por Deus para dar à humanidade a plenitude da vida. Sim, enquanto Filho do Deus vivo, Jesus está com o Pai numa relação singular de conhecimento, igualdade, vida. Tal como o Pai, o Filho é a vida em si mesmo. É sobre este dizer de Simão Pedro e sobre o Simão Pedro deste dizerdizer, não seu, mas recebido do Pai, que Jesus declara que construirá a sua Igreja (Mateus 16,18). Note-se a assonância «Pétros» – «pétra». Mas note-se também que quem constrói a Igreja é Jesus, e não Pedro, e a Igreja a construir também é de Jesus, e não de Pedro: «sobre esta pedra (pétra) construirei a minha Igreja», diz Jesus. Em todo o Novo Testamento, só Jesus e Pedro recebem o apelativo de «pedra». «Rocha», «rochedo», «pedra firme» diz-se, em hebraico, tsûrou sela‘, terminologia usada no Antigo Testamento por 33 vezes para dizer Deus e a solidez do seu amor fiel. Veja-se, por exemplo, na boca e no coração do Salmista: «O Senhor é a minha Rocha (sela‘) e a minha fortaleza (…), nele me abrigo, meu Rochedo (tsûr), meu escudo e meu baluarte, minha torre forte e meu refúgio» (Salmo 18,3).

4. Mas a forma originária para designar a rocha é keph, aramaico kêpha’, que mostra a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e protecção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos, mas várias vezes em Paulo (1 Coríntios 1,12; 3,22; 9,5; 15,5; Gálatas 1,18; 2,9.11.14); kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça para indicar a protecção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas. Esta terminologia abre para um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos e alimentados.

5. Note-se bem a precisão da pergunta de Jesus. De facto, Jesus não pede aos seus discípulos que se pronunciem ou deem a sua opinião acerca do Sermão da Montanha ou sobre outro assunto qualquer, por importante que possa ser ou parecer. A pergunta de Jesus é acerca de Si mesmo, da sua própria identidade, e do grau de implicação dos discípulos com Ele. Daí que Jesus pergunte sobre o dizer. Pedro diz. E face ao dizerde Pedro, Jesus declara de seguida: «Dar-te-ei as chaves do Reino dos Céus» (Mateus 16,19). As chaves representam um saber e um poder. Falamos de chaves de uma casa, de uma cidade, de um tesouro, da leitura de um texto. Quem as possui, possui um poder em sede administrativa, jurídica ou científica. É assim que o texto de Isaías 22,19-23 fala hoje do «rito das chaves» e do poder retirado a Shebna e conferido a Eliaqîm.

6. As chaves do Reino dos Céus são as chaves do amor e do perdão, traves mestras de uma comunidade unida e confiante, com os pés na terra e o olhar fixo em Deus. Diz, na verdade, a Constituição Dogmática Lumen Gentium: «Aprouve a Deus salvar e santificar os homens, não individualmente, excluída qualquer ligação entre eles, mas constituindo-os em povo» (n.º 9).

7. É importante, porque esclarecedora e mobilizadora, esta nota do Concílio Vaticano II. De facto, Pedro é a Pedra e tem as Chaves do Reino dos Céus, e é-lhe ainda dada a autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar: «Tudo o que ligares (dêsês: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeménon: part. perf. pass. de déô) nos Céus, e tudo o que desligares (lýsês: conj. aor. de lýô) sobre a terra, ficará para sempre desligado (lelyménon: part. perf. pass. de lýô) nos Céus» (Mateus 16,19). Todavia, esta autoridade de ligar-desligar, isto é, de perdoar, é também confiada à inteira comunidade, exactamente nos mesmos termos em que é confiada a Pedro: «Em verdade vos digo: tudo o que ligardes (dêsête: conj. aor. de déô) sobre a terra, ficará para sempre ligado (dedeména: part. perf. pass. de déô) no céu, e tudo o que desligardes (lýsête: conj. aor. de lýô) na terra, ficará para sempre desligado (lelyména: part. perf. pass. de lýô) no céu» (Mateus 18,18). A inteira comunidade assente na Pedra, que é Pedro, como Pedro, não alijando responsabilidades, mas operante na prática quotidiana do Perdão!

8. O texto do Evangelho de hoje termina registando a ordem taxativa de Jesus aos seus discípulos para não dizerem a ninguém que Ele é o Cristo (Mateus 16,20). O texto inteiro deste Evangelho (Mateus 16,13-20) é, então, percorrido por um dizer, e fecha com um não-dizer. Trata-se de um dizer novo, não meramente convencional ou tradicional. Não basta dizer um conjunto de palavras que vêm na torrente da tradição, que se recolhem, e se voltam a dizer. É assim que Pedro respondeu bem [«Tu és o Cristo»], e é louvado por isso. Não obstante, Jesus não quer que os discípulos passem esse dizer a ninguém (Mateus 16,20). Por que será?

9. Para sabermos a razão, temos de esperar pelo próximo Domingo (XXII), pois é aí que escutaremos Mateus 16,21-28, o seguimento imediato do texto deste Domingo XXI (Mateus 16,13-20). Na verdade, o texto integral de Mateus 16,13-28, dividido por estes dois Domingos, forma uma unidade incindível.

10. Entretanto, que o nosso coração esteja cheio do amor primeiro de Deus, e que o louvor que lhe é devido encha os dias da nossa vida. É a bela oração de Paulo na Carta aos Romanos 11,33-36.

11. À bela oração de Paulo junta-se hoje a voz do orante do Salmo 138 com a sua bela Ação de Graças, que é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

António Couto



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