Domingo IV da Páscoa: «Eu sou o Bom Pastor»

At 2,14a.36-41; Sl 23; 1 Pe 2,20b-25; Jo 10,1-10

1. Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico thôb, que qualifica o nome «Pastor». De notar que o Domingo IV da Páscoa, Domingo do Bom e Belo Pastor, é sempre também Dia Mundial de Oração pelas Vocações. E da mesa da Escritura deste Domingo transbordam tonalidades e sabores intensos, harmoniosos e deliciosos. Música encantatória. Água pura. Óleo perfumado. Verde prado em festa. Proximidade. Ternura. Confiança. Beleza em flor e fruto. Vida a transbordar. Tudo da ordem do sublime.

2. O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,1-10, que não deve ser visto apenas como um texto isolado, embora tenha sentido em si mesmo, mas sai enriquecido quando inserido no duplo enquadramento que lhe serve de contexto. Por um lado, situa-se no seguimento imediato de João 9,1-43, que analisámos no Domingo IV da Quaresma, e que trata da cura física e espiritual por Jesus de um cego de nascença. Por outro lado, devemos ter presente que o texto de João 10 tem o seu lugar no decurso da Festa judaica anual da Dedicação do Templo, como resulta da anotação de João 10,22.

3. Comecemos por olhar para o texto de João 10 no seguimento imediato de João 9, que trata da cura física e espiritual do cego de nascença. Esta cura, operada em dia de sábado, dá lugar a um confronto com os fariseus, que tudo fazem para desacreditar Jesus. O resultado é que, enquanto o cego vê cada vez melhor, os fariseus se vão tornando cada vez mais cegos. É com eles que Jesus fala no final, pondo à vista a sua acentuada cegueira (João 9,39-41). E é com eles que Jesus continua a falar em João 10, e é para eles que Jesus conta a parábola do rebanho e das ovelhas, que traz para a cena a figura do pastor em contraponto com a figura do ladrão ou salteador ou mercenário. Neste contexto, diz-lhes Jesus que as ovelhas ouvem e conhecem a voz do pastor, e seguem-no, mas não conhecem a voz do ladrão, e fogem dele. Está bom de ver que foi assim que fez o cego de João 9, que foi seguindo cada vez mais de perto Jesus, ao mesmo tempo que se foi afastando cada vez mais dos fariseus. A colocação de João 10, não à parte, mas no seguimento imediato de João 9 resulta, como se vê, grandemente esclarecedora, tornando-se mesmo obrigatório fazer esta ligação.

4. A figura do Pastor Bom enche muitas das páginas do Antigo Testamento, e traduz habitualmente a atitude cuidadosa e carinhosa de Deus, que é o Pastor Bom, para com as suas ovelhas, metáfora do seu Povo, quase sempre em confronto com os maus pastores, que esbulham e tratam em proveito próprio as ovelhas. Basta ver os textos de Ezequiel 34,1-23; Jeremias 23,1-4; Isaías 40,11; Salmo 23. Na página de João 10,1-10, ao dizer «Eu sou», Jesus assume a identidade e a atitude do Pastor Bom, que é Deus, e deixa aos fariseus o desempenho do papel de pastores maus. Ao dizer «Eu sou», Jesus está, em simultâneo, a dizer «vós sois» ou «vós não sois». Está a dizer «vós sois» para as suas ovelhas: está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal direta de proximidade, confiança e intimidade com as suas ovelhas, relação bem expressa, de resto, pelos verbos «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «conduzir», «caminhar à frente de», «seguir», «dar a vida». Mas está também a dizer «vós não sois» para os fariseus, colocados a conjugar os verbos «roubar», «matar», «destruir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,1-10 lê e desvenda «aqueles tempos» e os tempos de hoje!

5. Mas o texto grandioso de João 10,1-10 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo aprire] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos e sob a atenção vigilante do pastor.

6. Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho e de ovelhas, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se ainda que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas, hoje diríamos «confinadas». É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite! A messe ondulante está à espera de ceifeiros que saibam cantar (Salmo 126,5-6), porque também sabem que é Deus o Senhor da messe.

7. Situemo-nos agora no âmbito da festa anual da Dedicação do Templo (cf. João 10,22), habitat da parábola do Bom Pastor, apresentada por Jesus aos fariseus. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Este acontecimento remonta ao ano 167 a.C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, no ano 164 a.C., Judas Macabeu afastou os selêucidas, e procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano civil de 2023, no nosso calendário, terá lugar de 08 a 15 de dezembro.

8. A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial, cultural e todos os ambientes e situações. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista e escuro), não basta acender uma luz e mantê-la; é preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais luz. Mais luz.

9. Como este simbolismo é importante para os dias de hoje! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se e reduzir-se a fragmentos soltos e à deriva, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E é ainda necessário que esta Luz saia para fora: uma «igreja em saída», como sonha e pede o Papa Francisco! E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é também o segredo maior deste 60.º Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

10. A cristalina melodia do Salmo 23, que hoje cantamos, entranha-se suavemente em nós, fazendo-nos experimentar os mil sabores da paz, do pão e da alegria que em cada dia recebemos do Pastor belo e bom que amorosamente nos guia. Ele é o companheiro para quem as horas do seu rebanho são também as suas, corre os mesmos riscos, experimenta a mesma fome e a mesma sede, o sol que cai sobre o rebanho cai também sobre ele. Deixemo-nos, portanto, conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom e Belo Pastor. Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (shulhan), que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos… Como é importante recitar e saborear esta alegria pessoal que nos traz o Pastor belo e bom que nos chama e nos inebria. Confessou o filósofo francês Henri Bergson: «As centenas de livros que li nunca me trouxeram tanta luz e conforto como os versos do Salmo 23».

11. E aí está outra vez Pedro a exortar-nos na manhã de Pentecostes: «Salvai-vos desta geração perversa» (Atos 2,40). «Vós éreis como ovelhas desgarradas, mas agora regressastes para o pastor e supervisor (epískopos) das vossas almas» (1 Pedro 2,25). «Segui, pois, os seus passos» (1 Pedro 2,21).

12. Concede-nos, Senhor, Belo e Bom Pastor, que nunca nos tresmalhemos do teu imenso amor, e que saibamos sempre levar o tom e o sabor da tua voz que chama e ama a cada irmão perdido em casa ou numa estrada de lama.

 

António Couto



Newsletter Educris

Receba as nossas novidades