A Graça de Deus e a Liberdade do Homem

O homem é cioso da sua dignidade e da sua autonomia. Tem razão. Mas tem igualmente de entender que esta dignidade e esta autonomia não são a de um deus solitário.
O homem tem uma história pessoal e vive a aventura colectiva da História. Cada homem nasce desprotegido e os mecanismos instintivos não chegam para assegurar a sua sobrevivência e maturação. Tem de ser alimentado; precisa de receber carinho; tem de aprender a caminhar e a vestir-se; tem de ser introduzido na maneira de viver da comunidade a que pertence. Sobretudo, precisa de receber amor, e feliz dele se este amor lhe é dado por seres humanos equilibrados e felizes.
Ainda em criança aprende que é preciso fazer escolhas, embora não possa escolher tudo o que lhe passe pela cabeça. Não pode querer a Lua. Não pode fazer que um dia de inverno deixe de ser frio, embora possa, em geral, vestir mais roupa ou ir para o pé dum radiador. Infelizes das crianças a quem não deixam fazer escolhas, infelizes das crianças a quem deixaram escolher tudo. A liberdade e a finitude têm de começar a ser experienciadas muito cedo.
Depois, ao longo da adolescência, vai aprender que vida do homem não se mede apenas pelo calor ou pelo frio, pela fome, pelo dinheiro, pela satisfação do que apetece. Vai aprender que há comportamentos honestos e comportamentos desonestos, há generosidade e há egoísmo, não é estúpido “perder” dinheiro ou tempo para ajudar alguém. Vai aprender que o outro ser humano não é apenas um concorrente nem uma peça no meu jogo. Vai aprender que é possível e bom encontrar seres humanos generosos, em que é possível confiar. Vai aprender que é possível a amizade e o amor.
Como já acontecia na infância, nunca descobrirá bem estas coisas se não estiver em contacto com seres humanos que, nos limites do razoável, são equilibrados, são generosos, são felizes.
Feliz dele se um dia descobrir que amar não é ter mais um brinquedo, é entrar numa aventura com responsabilidade partilhada. Descobre então que um amor pequeno é um entrave à liberdade ou é uma fixação

passageira, um amor grande permite a eclosão da liberdade. Aquele que ama a sério, sabe que dá e que recebe. Não tem a ilusão de que criou sozinho a sua vida.
A relação do homem com Deus deve ser vista à luz desta experiência. Jesus disse que Deus não é nosso dono, é nosso Pai. Os profetas do Antigo Testamento e os grandes santos descobriram que a relação entre Deus e o homem tem qualquer coisa daquela alegria, comunhão, igualdade na responsabilidade, que caracterizam o amor pleno do homem e da mulher.
O Novo Testamento usa muito a palavra “graça”, a significar ao mesmo tempo dom e harmonia. Tudo começa com o dom de Deus, a sua graça. Mas o dom de Deus não é vontade de poder, não é estratégia de sedução e sujeição, é convite a que o homem também se torne dom. O encontro do dom de Deus e do dom do homem é fonte de harmonia, aquela harmonia que é limpidez e é paz.
Por isso a vida dos grandes santos é tão afastada dos defeitos correntes do homem religioso. Em S. Francisco de Assis ou na Madre Teresa de Calcutá não havia beatice, nem habilidade para levar a água ao seu moinho. Havia maturidade, alegria, respeito pela identidade do outro, capacidade de dom sem limites.
Por isso o Senhor Jesus, e com Ele S. Paulo, embirraram tanto com uma religiãofeita à base de regulamentos, prémios, proibições, contabilidade. Ver a santidade como uma conta bancária que deve ter saldo crescente é subverter a lógica do amor.

Padre João Resina Rodrigues


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