Dia Mundial da Alimentação: Discurso do Papa na FAO

No Dia Mundial da Alimentação o Papa Francisco visitou a sede do Fundo Alimentar Mundial (FAO), em Roma, onde proferiu um discurso sobre o tema da alimentação, do amor, da solidariedade, da verdade e da justa distruição dos bens. 

"Amar significa não continuar a dividir a família humana entre aqueles que gozam o supérfluo e aqueles que não têm o necessário" denunciou o Papa.

Leia, na íntegra, o discurso do Papa Francisco.

Discurso do Papa Francisco na Sede da FAO no dia Mundial da Alimentação, 2017

 

Senhor Diretor-Geral,
Distinguidas autoridades,
Senhoras e senhores:
 

Agradeço o convite e o bem-vindo que me dirigiu o Diretor-Geral, professor José Graziano da Silva, e saúdo calorosamente as autoridades que nos acompanham, bem como os Representantes dos Estados Membros e aqueles que têm a oportunidade de nos seguir a partir das sedes da FAO no mundo.

Exprimo uma saudação especial aos Ministros da Agricultura do G7 aqui presentes, e que terminaram a sua reunião, na qual discutiram questões que exigem uma responsabilidade não só em relação ao desenvolvimento e à produção, mas também à comunidade internacional no seu conjunto.

1. A celebração deste Dia Mundial da Alimentação reúne-nos na memória de 16 de outubro de 1945, quando os governos, decididos a eliminar a fome no mundo através do desenvolvimento do setor agrícola, instituíram a FAO. Naquele período de grave insegurança alimentar e grandes deslocamentos da população, com milhões de pessoas à procura de um lugar para sobreviver às misérias e adversidades causadas pela guerra.

À luz disto, refletir sobre os efeitos da segurança alimentar na mobilidade humana significa voltar ao compromisso a partir do qual a FAO nasceu, para renová-lo. A realidade atual exige maior responsabilidade a todos os níveis, não só para garantir a produção necessária ou distribuição equitativa dos frutos da terra - isto deve ser dado por certo - mas, sobretudo, garantir o direito a todo o ser humano de se alimentar de acordo com as suas próprias necessidades, participando também das decisões que o afetam e no cumprimento das suas próprias aspirações, sem ter que se separar dos seus entes queridos.

Diante de tal objetivo, o que está em jogo é a credibilidade de todo o sistema internacional. Sabemos que a cooperação está cada vez mais condicionada por compromissos parciais, que chegam mesmo a limitar as ajudas nas emergências. As mortes por fome ou o abandono da própria terra também são notícia comum, com o perigo de provocar indiferença. Precisamos urgentemente de encontrar novas maneiras de transformar as possibilidades numa garantia que permita a cada pessoa enfrentar o futuro com fundada confiança, não apenas com alguma ilusão.

O cenário das relações internacionais manifesta uma crescente capacidade de dar respostas às expetativas da família humana, também com a contribuição da ciência e da técnica, as quais, estudando os problemas, propõem soluções adequadas. Não obstante, estas novas conquistas não conseguiram eliminar a exclusão de grande parte da população mundial: Quantas são as vítimas da desnutrição, das guerras, das mudanças climáticas. Quantos carecem de trabalho e dos bens básicos e se veem obrigado a deixar a sua terra, expondo-se a muitas e terríveis formas de exploração. Valorizar a tecnologia ao serviço do desenvolvimento é certamente o caminho a percorrer, na medida em que sejam tomadas medidas efetivas para reduzir o número de pessoas com fome ou para controlar o fenómeno das migrações forçadas.

 

2. A relação entre fome e migração só pode ser resolvida se formos à raiz do problema. A este respeito, os estudos realizados pelas Nações Unidas, como tantos outros realizados por organizações da sociedade civil, concordam em considerar que são dois os principais obstáculos a serem superados: conflitos e mudanças climáticas.

Como se podem superar os conflitos? A lei internacional indica-nos os meios para preveni-los ou resolvê-los rapidamente, evitando que se prolonguem e que produzam fome e a destruição do tecido social. Pensemos nas populações martirizadas pelas guerras que duraram décadas, o que poderia ter sido prevenido ou, pelo menos, parado, e ainda assim propagou efeitos tão desastrosos e cruéis quanto a insegurança alimentar e o deslocamento forçado de pessoas. É necessário boa vontade e diálogo para parar os conflitos e um compromisso total a favor de um desarmamento gradual e sistemático, conforme previsto pela Carta das Nações Unidas, bem como remediar a peste desastrosa do tráfico de armas. De que vale denunciar que por causa dos conflitos milhões de pessoas sejam vítimas da fome e da desnutrição, se não se atua eficazmente em prol da paz e do desarmamento?

Quanto às mudanças climáticas, vemos as suas consequências todos os dias. Graças ao conhecimento científico, sabemos como lidar com os problemas; e a comunidade internacional também foi desenvolvendo os instrumentos jurídicos necessários, como o Acordo de Paris, do qual, infelizmente, alguns se estão a afastar. Com efeito, reaparece a negligência do equilíbrio delicado dos ecossistemas, a presunção da manipulação e controlo dos recursos limitados do planeta, a ganância do lucro. É, portanto, necessário esforçar-se para um consenso concreto e prático, se quisermos evitar os efeitos mais trágicos que continuam a cair sobre as pessoas mais pobres e indefesas. Somos chamados a propor uma mudança no estilo de vida, no uso de recursos em critérios de produção, mesmo no consumo, no que diz respeito à alimentação, perante um aumento nas perdas e nos desperdícios. Não podemos conformarmo-nos em dizer «outros o farão».

Penso que estes são os pressupostos de qualquer discurso sério sobre a segurança alimentar relacionada com o fenómeno das migrações. Hoje é claro que as guerras e as mudanças climáticas levam à fome, evitemos pois apresentá-la como uma doença incurável. As recentes previsões feitas pelos vossos especialistas contemplam um aumento da produção global de cereais, a níveis que permitem dar maior consistência às reservas mundiais. Este dado dá-nos esperança e ensina-nos que, se trabalharmos, prestando atenção às necessidades e deixando à margem a especulação, os resultados são suficientes. Na verdade, os recursos alimentares são muitas vezes expostos à especulação, que os mede apenas em termos de benefício económico dos grandes produtores ou em relação às estimativas de consumo, e não às exigências reais das pessoas. Desta maneira, favorecem-se os conflitos e o desperdício, e aumenta o número dos últimos na terra que procuram um futuro longe dos seus territórios de origem.

 

3. Diante desta situação, podemos e devemos mudar de rumo (cf Laudato Si’ 53; 61; 163; 202). Diante do aumento da demanda de alimentos, os frutos da terra devem estar disponíveis para todos. Para alguns, basta reduzir o número de bocas para alimentar e assim resolver o problema; mas esta é uma solução falsa se se levar em conta o nível desperdícios alimentares e padrões de consumo que maltratam tantos recursos. Reduzir é fácil, compartilhar, por outro lado, envolve conversão, e isto é exigente.

Por isso faço a mim mesmo, e também a vós, uma pergunta: Seria exagerado introduzir na linguagem da cooperação internacional a categoria do amor, conjugada com a gratuidade, igualdade de trato, solidariedade, cultura do dom, fraternidade, misericórdia? Estas palavras efetivamente expressam o conteúdo prático do termo "humanitário", assim usado na atividade internacional. Amar os irmãos, tomando a iniciativa, sem esperar ser correspondido, é o princípio evangélico, que também encontra expressão em muitas culturas e religiões, tornando-se princípio de humanidade na língua das relações internacionais. É necessário que a diplomacia e as instituições multilaterais organizem esta capacidade de amar, porque é a via mestra que dá garantia, não somente da segurança alimentar, mas também da segurança humana no seu todo global. Não podemos agir somente se os outros o fazem, nem limitar-nos a ter pena, porque a piedade limita-se às ajudas de emergência, ao passo que o amor inspira a justiça e é essencial para levar a cabo uma ordem social justa entre as diferentes realidades que aspiram ao encontro recíproco. Amar significa contribuir para que cada país aumente a produção e chegue a uma autossuficiência alimentar. Amar traduz-se em pensar em novos modelos de desenvolvimento e de consumo, e em adotar politicas que não piorem a situação das populações menos avançadas ou a sua dependência externa. Amar significa não continuar a dividir a família humana entre aqueles que gozam o supérfluo e aqueles que não têm o necessário.

O compromisso da diplomacia mostrou-nos, também em recentes acontecimentos, que é possível parar o uso de armas de destruição em massa. Todos estamos cientes da destruição de tais instrumentos. Mas estamos igualmente conscientes dos efeitos da pobreza e exclusão? Como parar as pessoas dispostas a arriscar tudo, a gerações inteiras que podem desaparecer porque não têm pão diário ou são vítimas de violência ou mudanças climáticas? Eles deslocam-se para onde vêem uma luz ou percebem uma expectativa de vida. Eles não podem ser interrompidos por barreiras físicas, económicas, legislativas e ideológicas. Somente uma aplicação coerente do princípio da humanidade pode conseguir isto. Por outro lado, vemos que a ajuda pública ao desenvolvimento é reduzida e a atividade das instituições multilaterais é limitada, enquanto se utilizam acordos bilaterais que subordinam a cooperação ao cumprimento de agendas e alianças particulares ou, simplesmente, a uma tranquilidade momentânea. Pelo contrário, a gestão da mobilidade humana exige ação intergovernamental coordenada e sistemática de acordo com as normas internacionais existentes e impregnada de amor e inteligência. O objetivo é um encontro de pessoas que enriquece tudo e gera união e diálogo, não exclusão ou vulnerabilidade.

Aqui, permiti-me que me una ao debate sobre a vulnerabilidade, que causa divisão a nível internacional quando se trata de imigrantes. Vulnerável é aquele que está numa situação inferior e não se pode defender, não tem meios, isto é, sofre uma exclusão. E é forçado pela violência, por situações naturais ou, pior ainda, por indiferença, intolerância e até mesmo odio. Perante esta situação, é justo identificar as causas para atuar com a competência necessária. Mas não é aceitável que, para evitar compromissos, se tenda a entrincheirar-se por detrás de sofismos linguísticos que não honram a diplomacia, reduzindo-a à "arte do possível" a um exercício estéril para justificar o egoísmo e a inatividade.

É desejável que tudo isto seja levado em consideração ao desenvolver o Pacto Global para uma migração segura, regular e ordenada, que está atualmente em curso nas Nações Unidas.

 

4. Prestemos atenção ao grito de tantos irmãos marginalizados e excluídos: "Estou com fome, sou estrangeiro, estou nu, doente, confinado num campo de refugiados". É uma petição para a justiça, não é um apelo ou uma chamada de emergência. É necessário, a todos os níveis, dialogar de forma ampla e sincera, para que as melhores soluções possam ser encontradas e amadureça uma nova relação entre os vários atores no cenário internacional, caracterizada pela responsabilidade recíproca, solidariedade e comunhão.

O jugo da miséria gerada pelo deslocamento muitas vezes trágico dos migrantes pode ser eliminado através de uma prevenção consistente de projetos de desenvolvimento que criem trabalho e capacidade para responder a crises ambientais. É verdade que a prevenção custa muito menos do que os efeitos da degradação da terra ou a poluição das águas, flagelos que afligem as zonas nevrálgicas do planeta, onde a pobreza é a única lei, as doenças aumentam e a esperança de vida diminui.

São muitas e dignas de louvor as iniciativas que estão a ser colocadas em marcha. No entanto, não são suficientes, é urgente continuar a promover novas ações e a financiar programas que combatam a fome e a miséria estrutural com maior eficiência e esperanças de sucesso. Mas se o objetivo é favorecer uma agricultura diversificada e produtiva, que leve em conta as demandas efetivas de um país, então não é lícito remover a terra arável da população, deixando que o land grabbing continue a realizar os seus interesses, às vezes com a cumplicidade de quem deve defender os interesses das pessoas. É necessário abandonar a tentação de atuar em favor de pequenos grupos da população, bem como usar indevidamente a ajuda externa, favorecendo a corrupção ou a falta de legalidade.

A Igreja Católica, com as suas instituições, tendo um conhecimento direto e concreto das situações que devem ser enfrentadas ou das necessidades a serem atendidas, quer participar diretamente deste esforço em virtude da sua missão, que a leva a amar a todos e a obriga também a recordar, a quantos tem a responsabilidade nacional ou internacional, o grande dever de atender às necessidades dos mais pobres.

Desejo que cada um descubra, no silêncio da própria fé ou das próprias convicções, as motivações, os princípios e as contribuições a dar à FAO Gostaria que todos descobrirem, no silêncio da própria fé ou das próprias convicções, as motivações, os princípios e as contribuições para incutir na FAO e noutras instituições intergovernamentais o valor de melhorar e trabalhar incansavelmente para o bem da família humana.

Muito obrigado.

Papa Francisco

Roma, 17.10.2017

Tradução Educris a partir do original em Italiano



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