IX Domingo do Tempo Comum: «É permitido ao sábado fazer o bem ou fazer o mal?»

1. O Evangelho deste Domingo IX do Tempo Comum faz-nos escutar as últimas duas (Marcos 2,23-3,6) das cinco controvérsias reunidas em Marcos 2,1-3,6. Depois do jejum e do Esposo (Marcos 2,18-22), que ocupa o centro da estrutura, e que são escutadas no Domingo VIII, eis-nos agora perante dois episódios que nos mostram Jesus como Senhor do sábado e sob o olhar acusador de fariseus e herodianos, que começam a tramar a forma como o hão de matar (Marcos 3,6).

2. O primeiro episódio (Marcos 2,23-28) mostra Jesus e os seus discípulos, em dia de sábado, a atravessar os campos. E dos discípulos de Jesus, diz-nos o narrador, que, atravessando os campos, colhiam espigas (Marcos 2,23), sob o olhar judicioso e acusador dos fariseus, que interrogam Jesus acerca deste incumprimento da Lei por parte dos seus discípulos (Marcos 2,24). Colher espigas em dia de sábado, naturalmente com o intuito de comerem os grãos, eis o que não era permitido fazer. Duplo, ou mesmo triplo, incumprimento da Lei. Ao sábado era proibido colher fosse o que fosse (Êxodo 34,21), bem como preparar qualquer tipo de refeição. E era apenas permitido percorrer, entre ida e volta 1892 metros. Dado que andavam pelos campos, é provável que também este último preceito estivesse a ser violado.

3. Jesus responde chamando a atenção dos fariseus para o episódio narrado no Primeiro Livro de Samuel 21,2-7. Aí, David, que andava fugido de Saul, que o perseguia, dirigiu-se a Aquimelec, sacerdote do santuário de Nob, e pediu-lhe cinco pães para si e para os combatentes que o acompanhavam. Aquimelec apenas dispõe dos chamados «Pães do Rosto» (lehem panîm), que são colocados, de sábado a sábado, diante do Rosto de Deus, em número de Doze, tantos quantas as tribos de Israel, dispostos em duas filas de seis sobre uma mesa revestida de ouro colocada diante do Santo dos Santos. Trata-se de pão consagrado a Deus, renovado todos os sábados. Ao sábado, colocavam-se sobre a mesa doze pães novos, e os doze pães antigos eram comidos ou consumidos apenas pelos sacerdotes e dentro do santuário. A mais ninguém era permitido comer aqueles pães (Levítico 24,5-9; cf. Êxodo 25,23-30). Todavia, dadas as condições de miséria e de fome de David e dos seus companheiros, Aquimelec dá-lhes para comer os pães consagrados. Esta remissão para a Escritura, este «Nunca lestes…», serve a Jesus para mostrar aos fariseus que o seu rigor está em contradição com as próprias Escrituras que querem citar a seu favor.

4. Mas há mais. Depois de referir aos fariseus este episódio (Marcos 2,25-26), Jesus dá por subentendido, tendo em conta a conhecida argumentação rabínica «do menor para o maior», que, se foi permitido a David e aos seus companheiros comer os pães consagrados, por causa da fome, quanto mais é permitido ao Filho de David e aos seus companheiros arrancar e comer espigas profanas. E quanto ao facto de as espigas terem sido colhidas em dia de sábado, Jesus aproveita a embalagem da subentendida argumentação rabínica, para declarar logo ali que «o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado», e que, «portanto, o Filho do Homem é Senhor também do sábado» (Marcos 2,27-28).

5. Com estas declarações conclusivas, fica claro que Jesus tem do sábado uma noção bem diferente da que têm os fariseus. Estes também admitiam algumas exceções no que se refere à prática das prescrições sabáticas. Por exemplo, era permitido fugir para salvar a vida, ajudar uma pessoa em perigo de vida, ajudar uma mulher com dores de parto, ajudar a apagar um incêndio, e coisas semelhantes. Mas eram sempre vistas como exceções à regra. Em relação ao entendimento dos fariseus, Jesus não é apenas mais liberal, alargando, por assim dizer, o leque das exceções à regra. Não. Jesus muda própria a regra, apresentando uma diferente conceção de Deus e da reverência que lhe é devida. A diferença reside sobretudo nisto: o amor devido a Deus não colide com o bem do homem. Deus está do lado do homem. E não há mais um pedaço de tempo para dedicar a Deus e outro pedaço para dedicar ao homem. Agora, o tempo é todo de Deus, e é por ser todo de Deus, que é também todo para o homem.

6. A controvérsia sobre o sábado continua no segundo episódio do Evangelho de hoje (Marcos 3,1-6), em que Jesus assume todo o protagonismo. Entra na sinagoga, em dia de sábado. Não nos é dito de que sinagoga se trate: se da de Cafarnaum (cf. 1,21-28) ou de alguma das sinagogas da Galileia (cf. 1,39). Mas é-nos dito que na sinagoga em que Jesus entra está um homem (ánthrôpos) com uma mão paralisada (Marcos 3,1). E é-nos dito igualmente que estão lá outros a ver se Jesus o curaria em dia de sábado, para o poderem acusar (Marcos 3,2). Se o homem aparece apenas com a determinação genérica de «ser humano» (ántrôpos), os outros não passam de «eles», que estão lá apenas como observadores que desejam poder transformar-se em acusadores. Só Jesus tem nome. Só Jesus entra. O homem e «eles» já lá estão. O homem não pede nada; «eles» não perguntam nada. Só Jesus tem nome, só Jesus fala, só Jesus age. Ele é verdadeiramente o Senhor do Sábado.

7. Desenhado e preenchido o cenário, Jesus diz (légei), no presente, ao homem: «Levanta-te (egeírô), e vem para o meio!» (Marcos 3,3). E diz (légei), no presente, para «eles»: «É permitido, ao sábado, fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matá-la?» (Marcos 3,4a). Não é dito, no texto, que o homem se tenha movimentado, mas é dito que «eles» se calavam (esiôpôn: imperfeito de duração de siôpáô) (Marcos 3,4b).

8. Note-se bem a voz de Jesus a ecoar no presente e no silêncio. Note-se também a força da pergunta que formula, e que tem resposta demasiado óbvia. Na verdade, o bem deve fazer-se sempre, não apenas ao sábado, mas em todos os dias da semana! E o mal nunca se deve fazer, nem ao sábado nem em dia nenhum da semana! Quanto a matar, é proibido pela Lei sem mais detalhes (Êxodo 20,13). E, portanto, não salvar uma vida é violar a Lei, pois é demasiado óbvio que matamos sempre que não salvamos alguém da morte. Neste momento, o narrador mostra-nos um dos gestos mais fortes de Jesus: olha ao redor (periblépô) para «eles», com ira e tristeza, por causa da dureza do coração «deles» (Marcos 3,5a). E diz (légei), no presente, para o homem: «Estende a mão!». «Estendeu-a, e ficou restabelecida a sua mão» (Marcos 3,5b).

9. Esta é, nos Evangelhos, a única vez que Jesus opera uma cura por sua própria iniciativa. Note-se, porém, que «aqueles» que estavam lá para verificar se Jesus curaria ao sábado, ficaram sem nenhum registo no bloco-notas. Na verdade, Jesus nada fez que se visse no que à ação de curar diz respeito. Mas note-se agora também que Jesus tudo fez para que «eles» pudessem ver bem a sua soberania. Ao fazer vir o homem para o meio, deixou-o claramente à vista de todos. Não o tomou à parte, como referem outros relatos (cf. Marcos 7,33; 8,23). Ao dirigir-se ao homem por duas vezes (Marcos 3,3 e 5), Jesus quer que todos vejam que ele se interessa pessoalmente por aquele homem. Sim, Jesus é a transparência de Deus-Pai, que não quer nunca ficar confinado na lonjura e impessoalidade.

10. O texto do Deuteronómio 5,12-15, que hoje fica a retinir nos nossos ouvidos, constitui o contraponto ideal de quanto vimos e ouvimos no Evangelho. O sábado transporta consigo a memória da liberdade. Não para alguns, mas para todos: para ti, para os teus filhos e as tuas filhas, para o teu escravo e a tua escrava, para o teu boi, para o teu jumento, para todos os teus animais, para o estrangeiro que reside no teu meio. Extraordinária lição de liberdade! O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), via o Sábado como uma pérola de Israel oferecida a toda a humanidade, um Templo de tempo, e não de espaço. Israel constrói o tempo onde outros povos constroem o espaço. Novidade arquitetónica de Israel. Por isso, não se pode reduzir o sábado a um preceito. Digamos nós: o nosso Domingo não pode reduzir-se a um preceito sob pena de pecado.

11. E S. Paulo, na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,6-11), diz, com finura e verdade, que levamos este tesouro em vasos de barro. Ele é a Luz, faz luzir a luz, tudo alumia. A nossa luz é reflexa, e reside aí a sua beleza. Assim, não há motivo para vanglórias, mas fica claro que somos apenas (e tanto!) pura transparência de Cristo, deixando que se manifeste no nosso corpo a sua vida. Noutro lugar dirá: «Levo no meu corpo os estigmas de Jesus» (Gálatas 6,17). Belo programa de vida.

12. Entretanto, e sempre, ressoa no nosso pobre coração comovido e agradecido, o belo canto do Salmo 81. Sim, Deus colocou-se ao lado de Israel e ao nosso lado para nos aliviar das cargas pesadas que nos oprimem, desde o Egito até aos nossos dias.

António Couto



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