Aveiro: Educar é fazer Crescer

Disponibilizamos a intervenção de Júlio Pedrosa de Jesus, antigo reitor da Universidade e Aveiro e ex-ministro da Educação, durante a homenagem a D. António Marcelino, no passado dia 9 de novembro.

 

1. D. António Marcelino está aqui, hoje
D. António Marcelino é um Bispo que admiro e manterei presente na memória. A sua humanidade, cultura, atenção e interesse pela educação, a relação que cultivou com a Universidade e com os universitários, o empenho que pôs na criação e desenvolvimento do CUFC são marcas que ficam e hão-de perdurar…
A frase que o programa de hoje nos recorda é bem significativa: «Quem quer o que Deus quer tem tudo quanto quer», ANTÓNIO MARCELINO.

 

E o que quer Deus? Quer que o AMOR alimente as nossas vidas … A encíclica «DEUS É AMOR» assinala múltiplos significados para a palavra, mas “ uma promessa de felicidade que parece irresistível, sobressai como arquétipo de amor por excelência” (Bento XVI, 2006, p. 9). E lembra-nos, mais adiante (página 52), que “O amor – caritas – será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa”. Amor é, pois, o que nos é proposto por Bento XVI, como resposta à interpelação de D. António Marcelino. Amor entre as pessoas é o que Deus quer!
Por isso, direi, que quem Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo … segundo D. António Marcelino, tem tudo o que quer.

 

A vida também se lê. Este é o título que deu ao livro em que publicou as suas crónicas no Correio do Vouga. D. António Marcelino usa as páginas desta publicação para se referir a questões importantes da sua missão, a temas quentes e difíceis em debate, às escolas católicas, analisando circunstâncias, contextos e comportamentos que mereceriam profunda e actualizada reflexão. Em toda esta escrita ressalta a sua preocupação pelas pessoas mais frágeis da nossa sociedade, uma atenção aguda, empenhada por ver que a democracia de que nos ufanamos e os direitos humanos que todos (?) defendemos, deixem de ser ficções jurídicas e linguísticas.
A educação é, na minha opinião, o instrumento mais sólido, ao dispor das pessoas, para que sejam cidadãos. Cidadãos vivos, empenhados, bem-sucedidos no trabalho pelos direitos da pessoa humana e pela democracia. Com amor. Será a educação que teremos no centro desta apresentação, a educação como chave de desenvolvimento da pessoa humana, a educação com o fim último de contribuir para o crescimento do ser, do saber viver juntos, do conhecimento e do saber fazer. A educação pensada para habilitar as pessoas a viver dignamente, a poderem, com autonomia escolher o caminho que desejam percorrer na vida. Veremos que os tempos distintos de desenvolvimento do ser exigem especial atenção ao modo como organizamos a educação.

 

2. Os fins da EDUCAÇÃO
Iniciei o convívio com a educação em casa – a minha mãe era regente escolar quando me deu ao mundo e não existiam licenças de parto naquela altura. Para ir para a sua escola caminhava 5 quilómetros, com um desvio para me deixar em casa da minha avó Júlia … Entrei na instrução primária na escola da minha aldeia, em Outubro de 1952, já lá vão 60 anos! Nessa altura falava-se em instrução primária e usava-se pouco a palavra educação associando-a à escola. Poucos colegas andavam calçados. Muitos passavam fome … Apenas dois de nós continuámos além da 4ª classe e a esmagadora maioria ficou-se pela 3ª. As escolas públicas mais próximas eram em Coimbra ou na Figueira da Foz, a cerca de 30 km, acessíveis por comboio que não existe mais.
O Francisco (nome fictício) é um caso que espelha bem o que era a escola e o Portugal daquele tempo … Família numerosa, gente muito pobre, fez a terceira classe e a certa altura emigrou … Hoje é um operário diligente e competente de empresa da região. Quando me encontra convida-me sempre a visitar, com ele, aqueles tempos … continua a ser um amigo que nunca esqueceu como vivemos a escola e, sobretudo, a solidariedade, a partilha que em muitos momentos nos enlaçou.
Estas visitas servem para lhes dizer que acreditei sempre que Deus não quer seres humanos mal tratados, sem condições para uma vida digna, excluídos das comunidades em que gostariam de crescer e viver. E a educação é, na minha capacidade de pensar a pessoa humana, a condição essencial para se poder aceder a tais condições de vida. Por isso, considerei ajustado ao momento falar da educação como condição de crescimento do ser humano hoje, nesta homenagem póstuma a D. António Marcelino.
Os pais tinham a responsabilidade de educar as crianças e usava-se a expressão pessoa bem-educada para traduzir comportamentos, modos de falar, atitudes, maneiras de se relacionar com o outro. Hoje quase não usamos o termo instrução, mas temos a palavra educação presente em variados contextos, com múltiplas conexões.
Em 2002, ao finalizar um período em que assumira grandes responsabilidades no governo da Educação, li um livro de Neil Postman, escrito e publicado em 1995, nos EUA, com o título: The End of Education – Redefining the Value of School. A sua tradução em português chegou-nos em 2002 com o título: O Fim da Educação – Redefinindo o Valor da Escola. Retive dessa leitura uma frase que me pareceu oportuna e relevante para nós, portugueses e interessados na Educação. Dizia Postman:
Quando ouço o que as pessoas têm a dizer sobre o ensino, reparo que a maior parte das discussões gira em torno dos meios – raramente se debruça sobre os fins. Deveríamos privatizar as nossas escolas? Haverá necessidade de implementar parâmetros de avaliação nacionais? De que modo deveríamos utilizar os computadores? Como poderemos ensinar a leitura?
Será que este modo de ver o mundo da educação é apenas válido para os EUA? Creio bem que tal não é o caso. Por isso, creio ser oportuno buscar respostas para a pergunta: o que é educação? Isto é, olhar com alguma atenção os fins da educação.
Ao longo do tempo e em diferentes países, a palavra educação tem tido distintas interpretações. Curioso e relevante para nós é termos presente que o termo inglês, education, significa a educação escolar, o sistema de ensino, a educação primária, secundária e superior.
 Há, ainda, quem leia a palavra como sinónimo de criar, de ensinar e de formar.
Criar seria a educação que se associa aos cuidados, ao amor da família e de quem a substitui ou coadjuva. A palavra ensinar ligar-se-ia à acção intencional, com métodos e contextos desenhados para realizar certos fins de desenvolvimento da pessoa. Requere o contributo de profissionais. Acontece nas escolas. Formar significa preparar para uma certa função social: ser professora, ser podador de árvores, ser eletricista, ser médica, ser cozinheiro, ser guia turístico, ser engenheiro civil. Atenção a que não estamos a falar de sinónimos! Porém, aqueles têm um cimento que os une: as palavras aprender e crescer.

 

Aprende-se em casa, desde bem cedo. Aprende-se nas escolas durante longo período das nossas vidas. Aprende-se no trabalho e no lazer. Mas, mesmo escolhendo o mesmo foco da aprendizagem, aprendemos de modo distinto na família, na escola e na empresa.
O que é essencial é que, qualquer que seja o contexto e o modo de aprender, se cresça sempre no ser, no conhecer, no saber fazer e no modo de viver com os outros.
R. S. Peters, filósofo e professor universitário inglês na década de 1960, faz notar que o conceito de educação não se refere a nenhum processo particular, mas a uma família de processos que satisfazem critérios inscritos na palavra educação. Estes processos podem ser vistos como tarefas e como realização da pessoa a que se associam certos juízos de valor. Assim, não se pode dizer que uma pessoa seja educada só porque domina certas competências, porque sabe fazer alguma coisa. Tem que dominar um quadro de conceitos, de princípios, de valores que lhe permita compreender o mundo em que vive, as habilidades que domina e aquilo que sabe fazer. No dizer de Peters, a pessoa transforma-se através daquilo que sabe, conhece e compreende. Para resumir o que é educar, aquele autor organiza o processo educativo nos elementos seguintes: treino, instrução e aprendizagem pela experiência, ensino e aprendizagem de princípios ou teorias, transmissão de pensamento crítico, conversão do “homem todo”.

 

Estes seriam os processos que conduziriam ao desenvolvimento de uma pessoa bem-educada, uma pessoa cujo conhecimento e compreensão não se resumem a uma só forma de pensamento e de saber.
Procurei, com estas observações, ilustrar a ideia de que faz sentido dedicarmos algum tempo a formar uma opinião sobre o que é educar, isto é, sobre os fins da educação e da escola, e a partilhar tal opinião com os que mais diretamente contribuem para a educação das crianças, adolescentes e jovens. Uma tal caminhada servirá, também, estou certo, a análise e a reflexão sobre o modo de organizar os tempos de educação de uma criança.

 

3. A Educação, base de desenvolvimento humano

 

É bem evidente que a generalidade das pessoas dá valor à educação, perceciona o seu impacto no desenvolvimento económico e na saúde das empresas, vê como influencia as aptidões para assumir responsabilidades e para exercer profissões. Mas espanto-me sempre que vejo pessoas altamente escolarizadas a procurar influenciar, desde bem cedo, as escolhas de um curso superior.

 

Os tempos que vivemos geram perplexidades. Busco análises sérias, reflexão informada, debate livre e sabedor, explicações fundamentadas para o desemprego jovem, a emigração de gente altamente qualificada e não encontro grande coisa.
Não é este o foco desta intervenção, mas gostaria que algumas pistas pudessem emergir para se pensar a educação, os seus caminhos de futuro e as relações com aqueles problemas e questões. De facto, gostaria que me acompanhassem na atenção a dar à ideia de educação como factor crítico do desenvolvimento humano.
 Educação é, em Portugal, uma questão tratada de muitos e bem diversos modos. Tem naturalmente a ver com o que queremos ser e com o tipo de sociedade em que desejamos viver. E desejamos todos, estou certo, ser felizes.
A Educação é, na verdade, o principal meio ao dispor das pessoas para ampliarem as suas capacidades de ser pessoas em plenitude, buscarem e conseguirem viver uma vida digna. Estamos a falar da Educação como condição básica de desenvolvimento humano. E desenvolvimento é liberdade, pois só a condição de poder ser e crescer com autonomia garante a dignidade às pessoas (Amartya Sen). 
Uma pessoa bem-educada descobriu quem é, o que deseja ser e todos os dias está em condições de buscar e encontrar caminhos para lá chegar.
Ao ver tanta gente jovem instruída, com diplomas de licenciatura, a fazer coisas que nunca pensou fazer ou a não ter mesmo profissão nenhuma, temos todos a responsabilidade de procurar razões para se ter aqui chegado.
Pensemos que a boa educação será sempre uma base sólida para percursos de desenvolvimento da pessoa, das comunidades em que se vive, usando autonomia. A autonomia que permite recusar escolhas que não respeitam a justiça e a dignidade humana. A autonomia que dá sentido a liberdade, ao amor, à solidariedade, ao bem comum. A liberdade e o amor que permitem a cada um ser feliz, viver bem consigo e com os outros.

 

4. Organizar e cuidar dos modos de educar
Comecei esta conversa recordando tempos em que a primeira fase da educação escolar era referida como instrução primária. Hoje, chama-se-lhe primeiro ciclo de educação básica, mas observamos disputas sobre a missão da escola e sobre a necessidade de distinguir entre o ato de ensinar e a missão de educar. A minha crença profunda é que não temos instituição educativa, escola, se não se ensinar educando. Se não se organizar a caminhada educativa a partir dos tempos e fases de crescimento das pessoas e das diferenças entre elas.
Compreenderão, neste contexto, que fale frequentemente da importância da fase de desenvolvimento da criança dos zero aos três anos, em que o cuidar das condições de crescimento da criança é um aspecto crítico para fazer emergir as bases do desenvolvimento educativo associado à educação de infância.
Este processo continua com a educação de infância, dos 3 aos 5 anos. São cinco anos em que o amor dos pais, a atenção e carinho dos cuidadores e das educadoras têm superior papel. É tempo de estar atento a todos os sinais do ser e criar-lhe espaço e oportunidades para se revelar e crescer. Para perguntar e ter respostas. Para olhar e querer saber. Para ouvir atentamente sem os adultos darem por isso. Para ser amado e feliz. Não se pense tanto em escola, nestas idades. Não é tempo de pôr a ênfase em ensinar e aprender saberes que são o coração da missão de uma escola. Deixe-se de ter o foco no escolar do pré-escolar e cuide-se mais do desenvolvimento da criança, do seu viver e crescer bem, com amor. Observe-se, acompanhe-se, cuide-se mais do ser humano em crescimento no seu corpo, na sua sensibilidade, na sua intuição, na sua inteligência, na sua relação com quem lhe é mais próximo. Reconheça-se que esse ser se alimenta de muitas fontes que a rodeiam e precisa de alimentos variados para que todas aquelas dimensões do ser cresçam.
A educação escolar começa com a educação primária, ou primeira, que entre nós se tem estruturado em dois ciclos (4+2anos). Já envolve instituições e pessoas especialmente preparadas para ensinar, para fazer aprender saberes essenciais, sem nunca esquecer o crescimento do ser que acompanhará toda a educação da pessoa. Não é tempo, ainda, de inscrever destinos profissionais. Mas são idades em que deve investir no aprender a viver juntos (o difícil é sentá-los!). Evite-se desencorajar a criança de interrogar, de questionar, de querer descobrir sinais e caminhos múltiplos, para a realização e crescimento do seu ser.
Os seis anos que se seguem ÀQUELES DOIS PRIMEIROS CICLOS, significam hoje o tempo complementar da educação escolar obrigatória (será que no futuro serão o período dedicado à educação secundária?).Deviam, por isso, ser pensados e estruturados como aquele período da educação escolar que complementa a preparação para aprender a conhecer, aprender a ser e aprender a viver com os outros. Isto exige que se aprofundem e consolidem conhecimentos fundamentais, os seus princípios explicativos, as fundações dos saberes que estruturam a pessoa bem-educada. É tempo, sem dúvida, também, para cuidar das bases do saber fazer e de aprender a fazer, mas tal só se entende num quadro de crescimento da pessoa que lhe não pode fechar caminhos. Fazer crescer, instruir educando, continua a ser o fim principal.
A agenda educativa tem hoje desafios grandes, e a expansão e diversificação da educação secundária é, seguramente, um dos mais exigentes. Pensando nos jovens em idade de escolaridade obrigatória, naturalmente. Mas prestando séria atenção também à necessidade de responder às necessidades de educação da população adulta. Continuamos esquecidos de que uma das mais sérias fragilidades da sociedade portuguesa está no nível educativo das gerações que abandonaram a escola cedo de mais e não tiveram ainda oportunidade de corrigir esse défice
Segue-se a educação superior. Uso o termo educação e não ensino, porque, também nesta fase, se trata de continuar a aprender a ser, aprender a viver juntos, aprender a conhecer e aprender a fazer. É superior se escolhermos saberes a aprender, modos de ensinar e de aprender, que sejam caminhos superiores de crescimento da pessoa. Aqui, também se debatem maneiras de responder a questões novas, difíceis:
- Como reduzir a rede?
- Fechamos instituições e estimulamos consórcios?
- Extinguimos cursos?

 

Porém, inspirando-me nas interrogações de Postman, nos EUA, em 1995, preferia que perguntássemos:
- Para que serve a educação superior hoje?
- Quais têm sido as tendências observadas em outros países e que contextos e estímulos existiram para as mudanças acontecerem?
- Que outras questões se põem à sociedade portuguesa que devem ter respostas envolvendo instituições e actores da rede de educação superior?
De facto, a missão fundamental da Educação Superior é proporcionar oportunidades diversificadas de crescimento educativo a jovens e adultos, é ampliar o conhecimento e a capacidade de compreender as pessoas e o mundo natural, é proporcionar acesso a respostas aos problemas com que nos confrontamos. Se ambicionarmos ter instituições e académicos associados ao desenvolvimento económico, social e cultural; se quisermos preservar e entender o que somos e para onde vamos, estas interrogações não podem faltar na busca de caminhos para o desenvolvimento da Rede de Educação Superior.

 

5. A Educação Começa ao Nascer

 

Falámos de fases e modos de a pessoa humana crescer para atingir a plenitude do seu ser. Espero que, chegados aqui, possamos perceber o sentido e o alcance do que nos disse uma professora de educação primária, numa sessão do Debate Nacional sobre a Educação, em 2007: a educação começa com a mama. Regressara a uma escola de primeiro ciclo na zona da Serra da Estrela, na região onde começara a sua actividade como professora e onde nascera. Um melro pousara na rede da escola e, para surpresa sua, viu crianças que não sabiam o nome da ave.
A minha experiência com os netos, as diferenças entre eles, , as relações, as experiências que geram perguntas, a  construção da linguagem … estou a berbequinzar … mostram bem que a linguagem se desenvolve bem cedo. De facto, se há factores críticos no desenvolvimento educativo de uma criança, alguns deles estão ligados ao contexto em que as crianças nascem e crescem. A escola, qualquer instituição educativa digna desse nome, tem, pois, que ter bem presente e responder às diferenças associadas a estes ambientes.

 

A história do Francisco, da Joana e da Manuela, alunos do segundo ciclo da educação básica, frequentando currículos alternativos … marcados para desistir da escola e da procura de um destino feliz … mas entusiastas parceiros de um projecto. Uma experiência vivida, desenhada e realizada para os fazer descobrir caminhos para aprender e acreditar no valor da educação e da escola. Confirmou-me esta tem capacidades escondidas para responder às desigualdades que vêm dos contextos de vida, reforçando, ou recriando, a esperança e a capacidade da criança, de qualquer idade, acreditar em si e no seu crescimento.
A importância fundamental dos contextos em que se nasce e se cresce no desenvolvimento educativo acentua o papel da creche e do jardim-de-infância. De facto, o modo como os profissionais de educação se relacionam com as famílias e com as crianças, a sua inteligência, dedicação e sensibilidade para responder às diferenças na sala de aula, serão, porventura, as chaves para se ser bem-sucedido em educação.
A Igreja Católica terá um amplo leque de oportunidades e meios de contribuir para que a educação seja crescimento de todos. De todos mesmo, qualquer que seja a sua condição e contexto de vida, do nascimento à sepultura, dentro e fora de instituições escolares. D. António Marcelino iluminar-nos-á numa busca serena de caminhos.

 

 

 



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